domingo, fevereiro 26, 2006

Entre o Sono e o Sonho


Entre o sono e sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho

Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre

Esse rio sem fim.


Fernando Pessoa

Quadras


É fácil a qualquer cão

Tirar cordeiros da relva.

Tirar a presa ao leão

É difícil nesta selva.

Eu não tenho vistas largas,

Nem grande sabedoria,

Mas dão-me as horas amargas

Lições de Filosofia.

Há luta por mil doutrinas.

Se querem que o mundo ande,

Façam das mil pequeninas

Uma só doutrina grande.

Quando os Homens se convençam

Que à força nada se faz,

Serão felizes os que pensam

Num mundo de amor e paz.

A arte em nós se revela

Sempre de forma diferente:

Cai no papel ou na tela

Conforme o artista sente.

Quem prende a água que corre

É por si próprio enganado;

O ribeirinho não morre,

Vai correr por outro lado.

Embora os meus olhos sejam

Os mais pequenos do mundo,

O que importa é que eles vejam

O que os Homens são no fundo.

Julgando um dever cumprir,

Sem descer no meu critério,

- Digo verdades a rir

Aos que me mentem a sério!


António Aleixo

Oração de todas as Horas

Agora,

que eu já não sei andar nas trevas,
não me roubes a Tua Mão, Senhor,
por piedade!
Voltar às trevas não sei,
e sem a Tua Mão não poderei
dar um só passo em tanta Claridade.

Pelas
Tuas feridas minhas, pelas tristezas
de Tua Mãe, Jesus.
não me deixes, no meio desta Luz,
de pernas presas...

Não me deixes ficar
com o Caminho todo iluminado
e eu parado e tão cansado
como se fosse a andar ...



Sbastião da Gama

Poesia


Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.



Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Amor é fogo que arde sem se ver


Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;


É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;


É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.


Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?




Luís de Camões


domingo, fevereiro 19, 2006

Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho

é uma constante da vida

tão concreta e definida como outra coisa qualquer,

como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso,

como este ribeiro manso em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam,

como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo,

que fossa através de tudo num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel,

base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral,

pináculo de catedral, contraponto, sinfonia,

máscara grega, magia, que é retorta de alquimista,

mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante,

caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança,

ouro, canela, marfim, florete de espadachim,

bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim,

passarola voadora, pára-raios, locomotiva,

barco de proa festiva, alto-forno, geradora,

cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão,

desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,

que o sonho comanda a vida,

que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança

como bola colorida entre as mãos de uma criança.

António Gedeão



Trova do Vento que Passa


Pergunto ao vento que passa notícias do meu país

e o vento cala a desgraça o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam tanto sonho à flor das águas

e os rios não me sossegam levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas ai rios do meu país

minha pátria à flor das águas para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas pede notícias e diz

ao trevo de quatro folhas que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa por que vai de olhos no chão.

Silêncio é tudo o que tem quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos direitos e ao céu voltados.

E a quem gosta de ter amos vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada ninguém diz nada de novo.

Vi minha pátria pregada nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem dos rios que vão pró mar

como quem ama a viagem mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir (minha pátria à flor das águas)

vi minha pátria florir (verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada e fale pátria em teu nome.

Eu vi-te crucificada nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada só o silêncio persiste.

Vi minha pátria parada à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo se notícias vou pedindo

nas mãos vazias do povo vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro dos homens do meu país.

Peço notícias ao vento e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia dentro da própria desgraça

há sempre alguém que semeia canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão

há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre


O amor é uma companhia



O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
 Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol
com a cara dela no meio.


Fernando Pessoa

Ser Poeta



Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente.


Florbela Espanca